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Livro de Contos
Wednesday, March 31, 2004
  VI.

Chamavam-lhe Rigoletto talvez porque passava os dias assobiando áreas de ópera. Este italiano tinha emigrado de Parma, havia largos anos e tinha-se estabelecido em Estocolmo como muitos outros latinos o faziam. A sua pizzaria, que não poderia deixar de ter o nome de Bela Italia, era muito frequentada, não só por quem de visita ao país do frio não perdera os hábitos de uma refeição quente do Sul, mas também e, principalmente, pelos locais, ávidos dos sabores mediterrânicos. Foi aí, a trabalhar como ajudante de cozinheiro, ele que em Portugal se tinha formado quase em mestre pasteleiro, que o 25 de Abril de 1974 o foi apanhar. Ao meio da tarde, tenuamente, a televisão estatal sueca falava não sei o quê de Portugal. João Vitoriano não dominava ainda aquela língua viking tão diferente da dele, mas o nome de Portugal, ele distinguiria da voz até de um japonês. Com a ajuda de Rigoletto e das imagens que valem bem mais que mil palavras, os tanques nas ruas a multidão numa zona que ele conhecia bem, o largo do Carmo, onde ele passava com frequência nas suas noites de Bairro Alto, era inconfundível. Confusão apenas aquele linguajar televisivo.
 
Tuesday, March 30, 2004
  V.

Vamos lá recapitular um pouco a vida do nosso protagonista e vamos também preencher um lapso de tempo que aqui não foi contado. João Vitoriano foi criança, fez a primária, sabia ler e escrever, guardou ovelhas e cabras, colheu amêndoas e alfarrobas, limpou as ervas do campo e fisgou pardais, caçava lagartixas ao laço e chutava uma trapeira na alegria dos recreios e da saída da escola, viajou de camioneta de comboio e de barco, também jogou o berlinde, trabalhou nos estaleiros, foi preso pelos esbirros da PIDE, cultivou-se politicamente sem militar, não quis ser militar e refractou-se. Foi às sortes e decidiu a sua sorte. Estava agora nas suas próprias mãos. Entretanto dos dezassete aos dezanove anos nada sabemos dele. Pois eu digo-vos. O Manuel Pereira passou à clandestinidade mas teria de sobreviver. Casado, o primeiro filho haveria de nascer antes do que planeara com Fernanda. A vida na clandestinidade começava a complicar-se. Mas, ao contrário do que a muitos leitores possa parecer, viver na clandestinidade não significa viver metido numa toca. Uma nova identidade, falsa pois claro, uma nova vizinhança, que o entendesse como mais um novo vizinho, uma vida sem dar nas vistas pelo menos nas actividades onde pudesse vir a ter que prestar contas a quem não lhe interessasse e eis que Manuel Pereira era agora o sócio que o João Vitoriano tinha arranjado para a sua pastelaria no Alto da Ajuda, tomada de trespasse a um galego que tinha mais jeito para petiscos que para doçarias. Dois anos, foi tudo quanto o João Vitoriano precisou para se inteirar da arte, de bater massas com ovos, de folhar massas com manteiga, de fazer cremes e chantilies, de enrolar tortas, de decorar pastéis. Dois anos a estudar a arte de bem pastelar, mas também dois anos a ler mapas a estudar regiões a aprender costumes. Um dia eu vou ter de enfrentar o mundo. E aí está João Vitoriano a rumar para o norte. Onde o Sol não se deita, onde João sabe que às vezes até não há Sol.
 
Monday, March 29, 2004
  IV.

Sem família, sem referências, quase sem dinheiro, fugido de uma guerra que não era a dele, de um país que pouco lhe dera, raízes são raízes, um dia eu voltarei, pensava ele, e agora João? João Vitoriano nunca virou a cara a nenhuma adversidade. E de repente, tal como tantas vezes lhe acontecia quando se sentia em solidão, o passado começava a surgir-lhe em catadupa como um filme não editado, onde as imagens de umas cenas se sucedem a outras incoerentemente, as que foram filmadas depois mas que pertenceram a uma acção que deverá entrar antes ou vice-versa, recordou o dia em que apenas com onze anos de idade colocou duas sacas de alfarroba no dorso do malhadinho e lá foi ele por esses campos fora, entregar lá onde o mundo acabava, onde o vento fazia uma curva de tão longe e tão ermo, que perdeu o rasto para o regresso e, na noite já caída, se perdeu. Não teve medo dos lobos que diziam haver na serra. Nem um uivo, ele escutou toda a noite. A lua fez-se cobertor, as estrelas as velinhas que a mãe mantinha todo o dia e toda a noite acesas desde que o mano tinha partido para França e o malhadinho deitado no chão, e fazendo-se de almofada, lhe deu o colinho que a senhora Isabel lhe costumava dar. De manhã, mal os primeiros raios do sol o beijaram, montou de novo o pequeno jumento e seguiu para os lados onde o sol se deita. Nesse Domingo não vestiu a camisa lavada, pois foi chegado já a missa era terminada. E nesse dia a senhora Isabel rezou a Nossa Senhora da Boa Viagem pelo Janita, para que voltasse com um Anjo da Guarda. E Janita voltou. Janita nunca teve medo de nada. Nem dos lobos, nem da PIDE, nem do sono, nem das fronteiras, nem dos carabineiros. João Vitoriano seguiu caminho, mas desta vez não foi para os lados onde o sol se deita.
 
Sunday, March 28, 2004
  III.

Em toda a sua vida João terá chorado menos de uma dezena de vezes. Duas das lágrimas que deixou correr, já tivemos oportunidade de fazer referência anteriormente. Convulsivamente só quando o coveiro jogou a primeira pazada de terra sobre a urna do pai acabada de descer à cova. Desta vez havia nele um misto de raiva, decepção e tristeza. Raiva, porque em nove anos nunca se lhes houvera ocorrido que o irmão poderia também já se ter finado. Decepção, porque ao fim de tantos escolhos para atingir aqueles confins do mundo não tinha conseguido chegar a tempo. Tristeza, porque a perda de um irmão por muito distantes que sejam já as recordações do mesmo, João Vitoriano tinha dez anos quando ele abalou para França, é sangue do nosso sangue e esse não há distância que lhe modifique a composição. Um acidente de trabalho numa obra de construção civil tinha-lhe tolhido a jovem vida. Deixara viúva e orfão. Da viúva não iria querer saber notícias. Nunca a conhecera, pouco os ligava e quiçá ela já tivesse casado de novo. Para recordar só teria a notícia do nascimento do sobrinho. Talvez um dia o viesse a encontrar. Espólio material do Francisco não lhe era conhecido e a mãe, enquanto fosse viva, não iria pela boca dele voltar a sofrer novo choque. Mais valia que ela o pensasse vivo, algures pelo mundo. E agora João?
 
Saturday, March 27, 2004
  II.

A comunidade portuguesa era grande por aqueles lados. Mas a cidade nada tinha a ver com as que conhecera antes. Naquela imensidão de gentes e de raças seria assim tão fácil encontrar o irmão como encontrou o Manel da ti Xica? Poucos se conheciam pelos nomes próprios e Francisco Vitoriano Pereira tal como vinha no remetente poderia ser tão simples de encontrar como o foi o primo na Cova da Piedade, ou tão difícil quanto encontrar uma agulha no palheiro da sua casa da aldeia. Subiu ao sétimo andar do prédio referenciado. A porta da escada estava aberta e a ansiedade fê-lo não tomar o elevador. Dois a dois ou três a três subiu os degraus daquela escadaria enorme sem sequer ter dado por isso. Tocou a campainha. Uma, duas, três, quatro vezes. Uma cabeça assomou á porta do andar de baixo. Voltou a meter-se para dentro. Já velhota nem reparou que de cima alguém lhe tentou falar. Puro desespero. Mas não se abate assim quem consegue subir de três em três os degraus de um sétimo andar. Mais um, dois, três toques na campainha, prolongados e de novo a cabeça da velhota de fora da porta do andar de baixo. Desta vez João não deixou escapar a oportunidade.
 
Friday, March 26, 2004
  Capítulo 2

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo

In “Trova do vento que passa” Manuel Alegre


I.

A guerra colonial estava mais efervescente do que sempre. Amílcar Cabral tinha declarado a independência da colónia e declarada constituída a República da Guiné-Bissau. Em Moçambique as tropas portuguesas sofriam reveses atrás de reveses. Mais dia, menos dia a Frelimo iria dar o golpe final. Em Angola era o que se sabe com os três principais movimentos de libertação a cercarem as forças nacionais em todas as frentes. Os nossos jovens continuavam a ser enviados em força para a guerra. João Vitoriano tinha agora dezanove anos e quiseram as sortes que ficasse apurado. O episódio na sede da PIDE tinha determinadamente alterado a vida do nosso protagonista. Uma maior consciencialização política e uma revolta interior contra todo este estado de coisas. Na guerra não teriam o nosso Janita. Nem tropa, se para isso fosse necessário dar o salto. Pensado e feito. Não foi fácil mas quem é do campo conhece o campo. E apesar de toda a vigilância fronteiriça João Vitoriano saltou. Tal como no dia em que chegou a Lisboa com uma morada num papel pardo assim se apresentava em Paris, com o remetente da última carta que a mãe tinha recebido do irmão, nove anos atrás. Rue de la Bastille, 125, 7ème étage, 17ème arr., Paris.
 
Thursday, March 25, 2004
  VIII.

Manuel Pereira era um activista político na clandestinidade. Ele era membro do partido mas ninguém o sabia. Nem a sua própria mulher. Inteligente e avisado, era, há muito, do seu conhecimento que Joaquim da Palma era um informador. De baixo escalão é verdade, mas da confiança da instituição. Quem melhor do que ele para tirar o primo daquela encrenca que apenas por culpa dele, mas sem qualquer ligação de facto, estava nos calabouços da PIDE a ser interrogado como se de um subversivo, perigoso comunista e instigador de greves se tratasse. O garoto não sabia de nada, e ele, por obra de não sabe que destino nem sequer tinha sido admoestado. Se calhar levaram o miúdo por engano e era a mim que eles vinham buscar naquele dia. Um telegrama para o Algarve, ainda hoje com destino e origem verdadeiramente desconhecida do narrador, e uns quantos contactos feitos no Algarve e eis Joaquim da Palma em frente ao miúdo que um dia tinha sido companheiro de carteira do seu Toi, na escola lá da aldeia. Foi tudo quanto bastou para que João Vitoriano saísse em liberdade. Sem uma explicação, sem uma desculpa. Apenas lhe devolveram os seus haveres. E abriram-lhe a porta da rua, que o moço nem para rodar a maçaneta tinha força. Sentou-se à mesa de um café para os lados do Chiado, pediu mas não viu chegar a carcaça e a laranjada. Adormeceu com a cabeça sobre a mesa. Acordou, pagou e foi embora.
 
Wednesday, March 24, 2004
  VII.

João Vitoriano regressa três dias depois. Os estaleiros estavam em greve. A polícia de choque barrava qualquer passagem. João Vitoriano não se tinha apresentado quando os patrões deram o ultimato. Quem não se apresentasse de livre vontade dentro de um determinado espaço de tempo era dado como grevista e seria despedido. A greve era ilegal em Portugal. O tempo era de ditadura. Governo e patrões de mãos dadas exerciam a tirania que o poder económico lhes confiava. De nada serviram as justificações de que esteve fora pela morte do pai. Isso era desculpa mal esfarrapada de um comunista que se teria arrependido à última hora. A mais que o Manuel Pereira, o outro algarvio da oficina e seu primo, também tinha aderido à greve e esteve na linha da frente. Não, aquilo era manha para se manter em contacto com os camaradas, depois de ter acertado a estratégia com o primo. Pior foi que não ficou só sem emprego. Aquelas relações perigosas com o Manuel Pereira iriam fazer dele suspeito pela PIDE. Eram seis e meia da manhã. O inverno estava rigoroso. Dois senhores de chapéu preto e gabardina levaram-no, era ainda noite. Passou três dias em Lisboa na sede da António Maria Cardoso. João Vitoriano que nunca se tinha metido em política estava quase a confessar. Sem comer, sem dormir, apenas uma esponja de água de vez em quando nos lábios, para um miúdo de dezassete anos feitos há pouco, depois de um choque como o da morte do pai ainda muito fresca na sua memória, o melhor seria confessar. Que sim que tinha feito a greve, que não tinha ido trabalhar por opção própria, que tinha sido por estratégia com o Manel da ti Xica, para se juntar aos outros camaradas. Tudo o que o agente lhe sugeria ele iria dizer que sim. Talvez o metessem numa prisão decente, lhe dessem algo de comer e que o deixassem dormir, dormir, dormir. E foi neste pensamentos que um jarro de água sobre a cabeça o fizera de novo abrir os olhos. Não, ele não poderia estar de novo na terra. Que raio fazia ali o Joaquim da Palma? É verdade que desde que acabaram a primária que ele não mais tinha visto o Toi. Que falavam que o Sr. Joaquim da Palma se tinha mudado para Faro com a família, que tinha arranjado um bom emprego. Que era da guarda ou da guarda fiscal ou lá o que era, só que nunca ninguém o tinha visto fardado. E da legião também não haveria de ser pois se nunca ninguém o viu fardado... Ele nunca tinha dado muita importância a isso. Na realidade ele e o Toi eram óptimos amigos e se o Toi foi para melhor, sorte a dele. Um dia também ele iria para uma cidade. Tinha até a promessa do Manel da ti Xica para vir ter com ele a Lisboa. Que Deus o guardasse. Tinha pena de não ter voltado a ver o amigo de infância e de escola, com quem jogava o berlinde, com quem chutava na trapeira e com quem ía aos pardais. Mas era melhor para o Toi. Nunca lhe invejou a sorte, e agora era o Sr. Joaquim da Palma quem o tinha acordado daquele sono com um jarro de água pela cabeça. Não, não podia ter voltado assim à terra sem ter dado conta, a não ser que isto tudo não passasse de um grande sonho, ou de uma fraqueza daquelas que dá na cabeça de uma pessoa depois de um choque como o da morte do pai.
 
Tuesday, March 23, 2004
  VI.

A quem tem calos nas mãos desde menino, o trabalho não mete medo. O algarvio, nome pelo qual passaria a ser conhecido João Vitoriano, aprendeu depressa o novo ofício. Trabalhava bem e levava uma vida regrada. O salário era magro mas o moço nunca tinha visto tanto dinheiro na vida. Pouco mais de dois contos de reis por mês, mas esse montante era tanto quanto o que mãe tinha conseguido amealhar para ele trazer para Lisboa. De vez em quando escrevia para a terra e, generoso de feitio e grato de coração, ía mandando um dinheirinho para os velhotes. O pai tinha entretanto adoecido. Uma pedra no caminho e o eixo da velha carroça não aguentou. Da queda nunca se haveria de recompor. A pouco e pouco se definhava no leito. Falaram na terra que uma costela teria perfurado o pulmão e que, de teimoso, o ti Joaquim nunca teria querido ir ao médico. Vá se lá saber. A verdade é que o pobre homem raro era que não cuspia sangue. João Vitoriano pediu uma licença no trabalho e foi assistir ao último adeus do pai. A mãe viúva não quis largar a sua casinha. Entregava-se à terra que tinham de renda ao lavrador e ela cuidaria da pequena courela e de alguma criação. O dinheiro dos ovos e dos franganitos, e algum que o seu Janita lhe enviasse de Lisboa iriam dando para viver até que Deus quisesse. Ela não era velha ainda, tinha só quarenta e nove anos, não precisava de vir dar maçada ao filho. Até porque o seu Janita, que era como ela chamava a João Vitoriano, ainda não tinha casa própria e não poderiam viver todos na do Manel da ti Xica. Um dia que ela se sentisse com menos forças, se o seu Janita ainda quisesse tomar conta dela, logo iria para casa do filho. E quem sabe se, farto das canseiras e perigos da cidade, quem sabe se ele não voltaria para a terra. Era assim que ela comentava a sua opção de solidão com a vizinhança, sempre que alguma de língua mais afiada, insinuava ou tentava criticar o seu Janita, tão bom filho. Do Francisco, desse nunca mais tivera notícias dele. Estava lá para França.
 
Monday, March 22, 2004
  V.

- Boa noite, minha senhora, mora aqui o Sr. Manuel Pereira? Diga que é o primo, o João Vitoriano, filho da tia Isabel lá do Algarve quem tá chegando.

Manuel Pereira vivia num modesto, mas confortável, apartamento na margem sul. O seu salário como operário metalúrgico não daria para muito mais mas dava-lhe para uma vida confortável. A renda de casa era baixa e com as horas extraordinárias, um ou outro Sábado, e mais o trabalho da Fernanda como “mulher-a-dias” ía compondo o orçamento. Como tinha casado havia pouco tempo e não faziam tenção de ter filhos tão cedo, a vida para eles não era muito complicada.
Àquela hora ainda o primo Manel da ti Xica não tinha chegado. Estava a prolongar. Tinha chegado um navio com um rombo enorme num dos mais conhecidos e perigosos acidentes com petroleiros e era precisa muita mão-de-obra para dar o trabalho pronto ao armador a tempo e horas. Nesse tempo a Lisnave era uma empresa florescente. Chegou a ter mais de dez mil trabalhadores. João Vitoriano entrou, a prima mostrou-lhe o sofá da sala onde ele iria dormir uns tempos. O Manel arranjou-lhe emprego na Lisnave. João ía finalmente ter um ofício.
 
Sunday, March 21, 2004
  IV.

Noite já fechada algumas luzes no cais, e no outro lado autocarros, agora sim, estava num meio mais conhecido pois de autocarro ele já tinha andado umas três vezes. E veio-lhe à memória de quando teve de ir a Silves ao médico quando, com oito anos de idade, lhe saltaram umas febres que as mezinhas da mãe não foram capazes de mandar embora e já lá iam quatro dias de grande sofrimento, a criança já estava mais lá do que cá, mas de cuja viagem não se lembra nem um pouco, pois a maldita temperatura nem os olhos o deixavam abrir nem a cabeça levantar do colo da mãe; uma outra quando se foi despedir do irmão, que os pais tinham feito questão de lhe ir dizer adeus ao comboio, aí sim ele lembra-se bem de, durante todo o caminho, ir anotando a passarada que levantava em bandos ao ruído do motor da velha camioneta da carreira, os campos de alfarroba e de amêndoa e até a passagem pela aldeia do Toi, o filho do Senhor.Joaquim Palma, que andava na mesma escola que ele e que, coitado do Toi, tinha de palmilhar a pé todas as manhãs pelo frio e todas as tardes no mais agreste calor ou debaixo de chuvas impiedosas, mais de uma légua para aprender umas letras que não lhe serviam para nada. Para quê aprender letras se guardar ovelhas, apanhar amêndoa ou tratar das alfarrobeiras não era trabalho para doutores. Ele, ao menos, sempre tinha a sorte da escola ficar a caminho da courela do pai e ter uma boleia na velha carroça antes do nascer do sol e o retorno se fazer pelo mesmo meio. Entre a saída das aulas quando o sol já ía no meio-dia e a chegada a casa, na alegria da sua infância, ora chutando numa bola de trapos, ora entretendo-se a caçar lagartixas, ora usando a fisga na qual era exímio para caçar um ou outro pardaleco que era petisco fino para quem vivia de açordas, gaspachos ou sopas fingidas de toucinho, João Vitoriano roendo a sua bucha de pão caseiro lá ía ter com o pai para ajudar na faina do campo. No fim do dia restava-lhe a consolação de não ir a pé para casa, e quase sempre sem conseguir suster as pálpebras adormecia na carroça entre sacas de ervas sonhando com um colinho que a senhora Isabel, sempre muito carinhosa, era capaz de lhe dar antes de quase o ter de arrastar para o divã que, na sala, lhe servia também de quarto. E, finalmente, a última vez foi hoje mesmo quando logo de manhã os pais o acompanharam, agora a ele, o filho João ao comboio para Lisboa. A segunda lágrima do dia corria-lhe pela face quando se lembrou da mãe. A primeira já tinha corrido, esta manhã, quando de lenço branco na mão acenou ao som de gaita do chefe da estação que deu ao maquinista o sinal de partida.
 
Saturday, March 20, 2004
  III.

Não estava entendendo nada daquilo. Ainda agora tinha atravessado o “mar”, de um lado para o outro, já tinha o garoto que entrar noutro barco, este agora muito mais pequeno, o que lhe aumentava o temor, para atravessar o “mar” para o outro lado. Este imenso mar que logo ele aprendeu que se chamava Tejo, haveria de conduzi-lo a casa do primo. Mas se lhe disseram que era assim que iria para a Cova da Piedade porque é que o moço não haveria de acreditar? Afinal ele nem estava a posição de contestar nada porque nada ele conhecia. Nestes pensamentos foi contemplando o que podia contemplar com a noite quase no horizonte. De um lado, umas luzinhas perfiladas traçavam-lhe o perfil de uma majestosa ponte, a qual ele nunca tinha visto nem da qual ele nunca ouviu falar. Pudera o João não tinha televisão, nem tão pouco a aldeia onde morava tinha luz eléctrica. De facto sempre tinha morado no fim do mundo. Do outro, uma amálgama de luzes, um enorme pórtico que ele não sabia para que é que servia e, à medida que se aproximava, as luzes de imensos casarios e contornos de barcos, tão grandes, tão grandes como ele nunca teria imaginado que pudessem existir, Mais tarde viria a conhecer e a trabalhar naqueles a que chamavam petroleiros. Em frente já se descortinava nova cidade.
 
Thursday, March 18, 2004
  II.

Quando o burro de madeira flutuante, zurrou pela última vez e as cancelas do pontão de desembarque se abriram, João Vitoriano pisou pela primeira vez a terra prometida. Num bornal cheio de esperança e quase vazio de coisa outra alguma, apenas uma camisa com que iria visitar o Senhor no próximo Domingo. No bolso, dois contos de reis que era tudo o que os pobres pais tinham conseguido amealhar para que o moço se pudesse aguentar pelos primeiros tempos. Decorria o ano de 1969, o velho Salazar já tinha falecido, novas esperanças se abririam ao país e a construção deveria precisar de serventes. Uma morada, rabiscada num pedaço de papel pardo, dava conta da existência de um primo, o Manuel Pereira, lá na terra conhecido pelo Manel da ti Xica, que um dia, de visita à Ti Xica, irmã da senhora Isabel, mãe de João Vitoriano, que sim, que o garoto quando fizer os dezasseis anos venha lá para casa, que alguma coisa se há-de arranjar. Era dia de semana e o Manuel Pereira não tinha podido ir esperar o garoto. Agora só lhe faltava saber onde ficaria a tal Cova da Piedade.
 
  Capítulo 1.

Este parte, aquele parte
e todos, todos se vão
Galiza ficas sem homens
Que possam cortar teu pão

In “Cantar de emigração” Rosália de Castro



I.

Era já lusco-fusco quando João Vitoriano desembarcou no Terreiro do Paço. Depois de uma longa e cansativa viagem de comboio que o trouxe das serranas terras algarvias, e de uma viagem de barco que o fez vislumbrar um manto de água como nunca houvera visto, João Vitoriano que sempre viveu na serra e, apesar dos escassos quilómetros que o levaria da sua aldeia à costa algarvia, nunca tinha ousado descer os montes, nem tão pouco para o tradicional banho do 31 de Agosto. O burro já estava velho e a antiga carroça que os seus pais usavam para o transporte da alfarroba não aguentaria a viagem. Mas de alfarroba era coisa que João Vitoriano nos seus dezasseis anos de idade nem queria ouvir falar. A proliferação de rações de origem industrial invadiram o mercado tradicional da criação de gado, cada vez menos as colheitas davam para cobrir as despesas. Aos pobres pais quase só a côdea de um pão de semana e um fio de azeite sobrava para as refeições diárias. Um filho, que há muito tinha abandonado o monte à busca de maior fortuna por terras de França e que por lá andaria se Deus quisesse, não tinha enviado mais de uma meia dúzia de cartas, a última das quais anunciando o nascimento do seu primeiro filho e há mais de seis anos que nada sabiam dele, não poderia ajudar mais do que ajudou até à hora da abalada e um outro, ainda catraio, João Vitoriano que mesmo trabalhando desde os oito anos de idade, era mais uma boca para alimentar que uma fonte de rendimento para a família. Ao João não restaria outra alternativa senão emigrar para procurar a sorte que o campo não lhe conseguiu trazer. Eles lá se haveriam de arranjar.
 
Um romance...ou mais

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