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Livro de Contos
Friday, April 16, 2004
  VII.

João tem hoje cinquenta e um anos. Mais de meio século, vive na aldeia do Algarve que o viu nascer. Olaff é arquitecto. De grandes cidades e vive na cidade. Ingrid e João Vitoriano têm uma pequena exploração agrícola ecológica. A senhora Isabel, nos seus mais de oitenta anos, curvada, que a vida do campo deixa as suas marcas, criou um neto que um dia lhe apareceu vindo de França, trazido por um emigrante lá da terra. Francisco só vivia na sua memória, mas o neto que era a cara estampada do pai traz-lho todo dia à lembrança. Já chorou muito, não tem mais lágrimas. Vai a levando, como ela costuma dizer. João Vitoriano bastas vezes ao serão vai contando algumas das histórias da sua vida. Uma vida vivida de muitas paixões, e de poucos amores. Ingrid vive ao seu lado e as madeixas de cabelo louro, quase branco ainda lhe cobrem o rosto ao acordar.
 
Thursday, April 15, 2004
  VI.

Os governos provisórios sucediam-se, o conselho da revolução radicalizava-se. João Vitoriano sempre sereno sabia o que queria. Ele era da linha da frente e, na frente, haveria sempre de seguir com os seus camaradas. As sedes do seu partido eram queimadas, ele lá estava para ajudar a reconstruir. O seu partido era atacado, ele estava no meio, de peito aberto, a defender. E veio o onze de Março e ele não esmoreceu. A reacção mais uma vez não passaria. O governo decidira iniciar um processo de nacionalizações contra a fuga dos capitais para o estrangeiro, pondo nas mãos do estado os sectores estratégicos da nossa economia. Mais uma conquista a juntar a tantas outras que se tinham conseguido nos últimos tempos. E no dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e cinco João Vitoriano, braço dado com Ingrid, lá estava, ele. Não seria o primeiro da longa fila, mas estava entre os primeiros. E pela primeira vez na vida ele pode votar. Pela primeira vez na vida os portugueses e as portuguesas tinham podido votar em liberdade. Tudo tinha valido a pena. Os cantores, proibidos pelo fascismo, cantavam, os poetas podiam expressar livremente as suas odes, os jornais não eram mais censurados, as ideias discutiam-se livremente e agora, agora também se votava em liberdade. João era um homem feliz. Mas a reacção não desarmava. Ao que eles chamavam os excessos da revolução, como se a revolução não fosse ela própria um excesso sem o qual não poderia haver revolução, as forças mais reaccionárias íam tomando posição. Algumas desatenções, muitas hesitações, demasiada demagogia pareciam estar a querer inverter o caminho. Por fim a desilusão, os sonhos ruídos de João Vitoriano. O vinte e cinco de Novembro aconteceu. Então ele olhou para Ingrid, Ingrid olhou para ele. De facto houve ali alguém que se enganou.
 
Wednesday, April 14, 2004
  V.

Em paralelo às acções nos bairros, os trabalhadores nas empresas, os camponeses nos latifúndios, os soldados e marinheiros nos quartéis íam tomando conta dos meios de produção, da reforma agrária e das modificações aos regimentos castrenses transpondo para os mais diversos locais de actuação as conquistas que a nova democracia lhes ía proporcionando obter. Formaram-se cooperativas, unidades colectivas de produção, gestões participadas. Em todas as frentes que pudessem contribuir para as melhorias das condições de vida dos seus camaradas de bairro e de trabalho, João Vitoriano trabalhava. Chegava a casa cansado de um dia de trabalho, mas o dever chamava-o à sede do partido. Havia que escutar directivas, concertar estratégias, planear acções. Por um momento João Vitoriano pensou que tudo se pudesse perder. Estava anunciada uma manifestação de uma auto intitulada maioria silenciosa. João e Ingrid temeram. Mas a determinação, a força da razão que julgavam ter, fizeram com que as suas estruturas embora temendo não tremessem. E João Vitoriano, esteve nas barricadas. Contra a reacção e as forças mais obscuras da extrema-direita e do capitalismo. E a reacção não passou. A reacção não passará.
 
Tuesday, April 13, 2004
  IV.

João, vinte e um anos de idade, casado, pai, membro da comissão de moradores, adere rapidamente à militância política activa. Apresenta-se em quase todas as sessões de esclarecimento dos vários partidos de esquerda e em breve será ele próprio quem dirigirá algumas dessas sessões. Colabora na feitura dos jornais de parede da empresa, distribui o boletim informativo da comissão, trabalha aos domingos na construção da escola para os garotos do bairro. A quinta estava há muito abandonada. O antigo dono que já dela pouco amanhava tinha-se retirado e os terrenos seriam em breve alvo de expropriação. A ocupação deu-se numa tarde do mês de Junho. Amplo casario votado ao abandono e tanta gente sem casa e tanta criança tendo de palmilhar quilómetros e quilómetros a pé para ir para a escola à chuva e ao frio. E João era, de todos, aquele que melhor sabia quanto aquilo era desumano. Ele tinha passado por igual, mas estava na hora de mudar as coisas. Encabeçando a comissão, em nome dos moradores do bairro exigiu à autarquia todo o apoio para o aproveitamento de todo o complexo da antiga quinta. E em breve as crianças se encheriam de novo de alegria em ir á escola, numa escola feita no bairro deles, que apenas graças à revolução e à solidariedade tinha sido conseguida. E atrás daquela ocupação outras se seguiriam, sempre tendo a comissão o cuidado de distinguir o que era abandono dos antigos e ricos proprietários do que era ocupação selvagem e sem sentido, às quais João Vitoriano sempre se oporia.
 
Thursday, April 08, 2004
  III.

Mas a vida da aldeia já João Vitoriano tinha deixado de fora da sua ideia. Também não fora para isso que voltara. Lá, só para ver a mãe e recordar os cheiros. Ele agora era um citadino e a revolução começava a ferver-lhe no sangue. As esperanças de ajudar a fazer um país novo estavam mais vivas que nunca. João voltou para a grande cidade. Veio morar para um bairro onde se começavam a organizar os moradores em comissões. Pelo meio as grandes manifestações espontâneas em todo o país. Aquele mês de Maio fora o mais lindo da sua vida. Casa arrendada, emprego conseguido, de novo de regresso aos estaleiros que o tinham despedido e que agora num laivo de consciência o convidavam a reintegrar-se, não tardou que Ingrid e Olaff se lhes juntassem. Um recomeço sem mágoa do passado, mas um recomeço de esperança, esperança, esperança.
 
Wednesday, April 07, 2004
  II.

Do autocarro que o levaria de Silves até à aldeia, pode João Vitoriano recordar o que quatro anos antes tinha deixado para trás. Afinal quase nada tinha mudado. Ali o tempo não passava. Os dias corriam iguais a todos os dias mesmo que fossem diferentes. Quando chovia, chovia igual aos outros dias em que tinha chovido e quando solava, solava igual a todos os outros dias de Sol. Que seria feito do Toi agora que ele passava à porta do Joaquim da Palma, o informador que um dia o tinha desenrascado das unhas dos esbirros? E os três dias tenebrosos da sua adolescência foram passados em revista, minuto a minuto, hora a hora, dia por dia, como se estivesse dentro de uma curta-metragem de terror. A senhora Isabel não o veio esperar à paragem da camioneta. Claro, ele nem sequer tinha avisado que voltava. Foi tudo tão de repente. Mas o abraço que ambos deram no momento do reencontro, não há palavras aqui que possam descrevê-lo.
 
Tuesday, April 06, 2004
  Capítulo 3.

Quando a nossa festa s'estragou
e o mês de Novembro se vingou
eu olhei p'ra ti
e então entendi
foi um sonho lindo que acabou
houve aqui alguém que se enganou.

In “Eu vim de Longe” J. Mário Branco


I.

Dez da manhã do dia 29 de Abril. O Sud-Express proveniente de Paris chegava a Santa Apolónia. Nele vinham muitos que, de todas as partes da Europa, se queriam juntar à festa. João Vitoriano, vinte anos de idade, uma mão cheia de pequenas experiências da vida, filho de uma mãe solitária e pai de um agora quase órfão de pai, trazia no peito a esperança, tão apertada quanto apertado pode vir um peito de quem deixou para trás a seu maior tesouro. Ele só tinha uma pequenina fortuna, Olaff. E mais dois outros amores, a senhora Isabel e Ingrid. E foi a pensar em Olaff, e em Ingrid que mal saiu do comboio já estava pronto a embarcar num outro, aquele que o levaria aos braços de sua mãe.
 
Monday, April 05, 2004
  XI.

Ingrid era apenas dois anos mais velha que ele. João tinha feito os vinte havia pouco mais de uma semana, Ingrid estava quase nos vinte e dois. Olaff tinha duas semanas de idade. Do pai, a tez morena. Da mãe, o cabelo loiro e os olhos azuis. Ingrid e João nunca discordaram de nada desde que se conheceram, excepto quando João Vitoriano disse a Ingrid que gostaria que o garoto se chamasse Francisco que era o nome do seu falecido irmão. Mas Ingrid recusou-se. Francisco e Francesco eram demasiado próximos. E Francesco era já passado. Não poderia agora que tinha uma nova vida, viver toda a vida agarrada ao passado por causa de um nome. Optaram por um mais próximo das origens. Olaff era até um nome histórico e, Olaff tinha nascido de uma bela história de amor. Olaff seria a graça do pequeno. Mas como fariam agora com um filho de tão tenra idade, ambos com empregos estáveis, para vir para Portugal? Afinal agora Portugal era um país “livre”, talvez até que fossem amnistiados, todos os que desertaram ou os que foram dados como refractários. E Ingrid, porque era culta e falava correctamente o inglês como se fosse a sua língua materna, não iria ter dificuldade em se adaptar a este novo Portugal. Mas Ingrid ficou. E com ela ficou Olaff. E João partiu. Mas mais cedo ou mais tarde se juntariam.
 
Sunday, April 04, 2004
  X.

Ingrid tinha tido, em tempos, um namorado italiano. Sempre teve uma inclinação por gente de pele morena, tisnada pelo sol do mediterrâneo e o seu algarvio só poderia ser a melhor continuação para o romance que um dia iniciou com um belo ragazzo, mas que quis o destino não pudesse continuar. Francesco assim se chamava o transalpino caíra no porão de um navio nos estaleiros navais da cidade. Quando o recuperaram era já cadáver. Rigoletto e Ingrid eram a sua única família. Alguns camaradas de trabalho e chefe da secção acompanharam-no à partida do avião que o levaria a Parma. Rigoletto chorou o irmão como só os latinos sabem chorar os seus mortos. Ingrid não evitou que duas lágrimas furtivas lhe escorreram pelo rosto. Rigoletto voltou à sua Bela Itália. Não ao seu país de origem mas à sua pizzaria na baixa de Estocolmo, junto ao cais. Ingrid, de aparência fleumática mas de coração de manteiga seguiu o caminho da bebida. Todos os fins-de-semana, de sexta a domingo, ali estava ela, na Dinamarca, para beber sem limites. Até que um dia no ferry encostou a cabeça a nova pele morena. João Vitoriano talvez não a tenha feito esquecer Francesco. João Vitoriano fê-la esquecer a bebida. Rigoletto empregou João. E, novamente, João Vitoriano tinha quem lhe chamasse Janita. A casa de Ingrid era agora a sua casa.
 
Saturday, April 03, 2004
  IX.

Acordou deitado em fina cama. Uma mão suave passava-lhe pelo rosto e os lábios colavam-se-lhe à testa. Não, não poderia ser a sua mãe. Estava muito longe da serra algarvia e o divã onde dormiu nunca teve lençóis de tão puro linho. Uma madeixa de sedosos fios de um amarelo claro, quase branco, cobria-lhe a cara. Um cheiro a ovos mexidos e um odor a laranja pairavam no ar. Ingrid tinha-lhe preparado um delicioso pequeno-almoço e tinha-o acordado com um beijo. Até àquele dia nunca ninguém tinha beijado aquela testa desde que partiu de casa de sua mãe. Ingrid foi o seu primeiro e único amor. Ingrid iria ser a mãe do seu filho.
 
Friday, April 02, 2004
  VIII.

Da vida do nosso emigrante não havia muito que contar. Da decepção do não encontro com o irmão e da decisão de rumar para Norte ele que era do sul, já aqui lhes falamos. No ferry que o conduziria de Copenhaga a Estocolmo, fruto de alguns encontrões e muitas bebedeiras, haveria ele de encontrar Ingrid. Ingrid era uma nórdica pura. Loira, alta, olhos azuis, rosto bem talhado mostrando a evidência da sua ascendência viking, mas de uma fragilidade que só vista, talvez culpa da carraspana daquele fim-de-semana, Ingrid dormiria toda a viagem encostada àquele estrangeiro de aspecto rude mas ao mesmo tempo de uma finura que lhe parecia confiável. Se é que alguém naquele estado de alcoolismo tem capacidade de análise de quem quer que seja, ou do que quer que seja. A brisa fresca, quase gelada, que corria no mar de norte ajudava a acalmar o calor que as faces rosadas não negariam. Quando chegaram, Ingrid achava que era ainda hora de acabar a noite num bar qualquer da cidade. Mas os bares dessa cidade pareciam a taberna da sua aldeia às dez da noite de qualquer dia de semana. Nem vivalma que no outro dia era dia de ir para o campo com o nascer do sol. Nem vivalma que o álcool ali tinha um preço proibitivo e porque no outro dia era dia de ir para os empregos com o nascer do sol que teimava em não se deitar. E foi na pizzaria Bela Itália que encontraram o conforto para a noite quente-fria de brisa e álcool.
 
Thursday, April 01, 2004
  VII.

Pegou no telefone e embora com alguma dificuldade dado o grande congestionamento das linhas que se estava a verificar por todo o país naquele conturbado dia de Abril, conseguiu escutar a voz comovida do primo Manel da ti Xica.

- Primo, primo, vitória, vitória, os gajos caíram, o exército, o MFA brrrrrr crrrr.

Novo congestionamento, naquela sucessão de palavras saídas de uma garganta tolhida pela emoção mas de onde irradiava felicidade a olhos vistos, se é que se pode ver algo através de uma linha telefónica. No dia seguinte, após uma noite não dormida, João Vitoriano ficou a saber que um tal denominado Movimento das Forças Armadas se havia sublevado e derrubado o regime de Marcelo Caetano. Mais difícil estava fazer render a PIDE, a tão odiosa PIDE de más recordações para João Vitoriano, mas que haveriam também de se render. Santa Apolónia era só dali a um pulo e ele haveria de chegar a tempo para integrar a grande manifestação do primeiro 1º de Maio em liberdade.
 
Um romance...ou mais

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